Nossos testes, nosso olhar!

Para dar continuidade a série de textos sobre avaliação neuropsicológica, achei que seria interessante falar um pouco dos testes que nos ajudam a investigar nossas hipóteses.

Começo dizendo que uma boa parte dos testes ainda não são validados e padronizados para a população brasileira, o que dificulta um pouco nosso trabalho por duas razões: 1) não somos autorizados pelo Conselho Federal de Psicologia para o uso destes testes, e 2) os resultados da avaliação serão comparados com outro grupo da população, ou seja, com amostras não brasileiras. Porém, quando estamos aprendendo sobre testes e avaliação na graduação, ou em cursos de pós-graduação, é importante que saibamos o que existe em termos de prática clínica e de pesquisa, ou seja, quais baterias, testes, escalas e questionários já foram desenvolvidos e o que podemos utilizar no nosso trabalho.

Falarei de uma forma resumida sobre o uso de testes na população adulta nesse primeiro momento, mas pretendo aprofundar e dar mais detalhes quando for escrever sobre avaliação de casos clínicos mais específicos.

Por hora, também não vou mencionar escalas e questionários, apenas os testes e as tarefas mais comuns. E antes que alguém diga que eu valorizo demais os testes, quero dizer que avaliação funcional e qualitativa é tão importante quanto o uso destas ferramentas.

Escala de Inteligência WAIS-III (Wechsler Adult Intelligence Scale – 3th edition): Geralmente, o uso de protocolos de avaliação incluem testes como os da bateria de inteligência Wechsler. Trata-se de uma bateria que avalia a eficiência intelectual do paciente por meio de vários subtestes. Teoricamente considera-se que a inteligência é composta por várias habilidades cognitivas, como atenção, raciocínio, abstração, compreensão, linguagem, percepção, velocidade de processamento, memória operacional etc.

Quando os escores dos subtestes do WAIS são convertidos e somados podemos ter uma noção da inteligência geral que pode ser subdivida em quociente intelectual verbal e quociente intelectual de execução. Essa divisão é feita com os seguintes subtestes:

Subtestes do QI verbal: vocabulário, semelhanças, aritmética, dígitos, informação, compreensão, sequência de números e letras.

Subtestes do QI de execução: completar figuras, códigos, cubos, raciocínio matricial, arranjo de figuras, procurar símbolos, armar objetos.

Teste de Classificação de cartas Wisconsin (WCST): O Wisconsin é um teste que mede principalmente a capacidade de flexibilidade cognitiva, planejamento, inibição de respostas perseverativas e resolução de problemas diante das mudanças do ambiente, isto é, do feedback externo imediato do examinador. O objetivo é que o paciente ofereça respostas positivas visando  atingir uma meta. Grupos de pacientes com lesão frontal (região responsável pela nossa habilidade de resolver problemas, criar estratégias, flexibilizar o pensamento e tomar decisões), apresentam uma grande dificuldade com este teste.

Figura Complexa de Rey: Teste de cópia e de reprodução da memória imediata e tardia de figuras geométricas complexas. É apresentado ao paciente uma figura que precisa ser copiada, em seguida retira-se a figura para sua recordação imediata e mais uma vez após 30 minutos. Também avalia capacidade de percepção e planejamento.

Rey Auditory Verbal Learning Test – RAVLT: Teste de memória episódica imediata e tardia de listas de palavras apresentadas cinco vezes e evocadas a cada repetição. Em pacientes com problemas sérios de memória, observamos uma grande dificuldade em recordar a lista mesmo por meio da repetição. Outros pacientes, embora apresentem déficits, como por exemplo, resolução de problemas, flexibilidade cognitiva ou de percepção, ainda podem se beneficiar desta repetição de estímulos, mesmo após transcorridos alguns minutos.

Memória Lógica: Outro teste de memória episódica de modalidade verbal. É composto por duas histórias com 25 ideias cada. O paciente deve lembrar o maior número de informações possíveis sem ser necessariamente na mesma ordem apresentada. É feita uma recordação imediata, ou seja, logo após a apresentação das histórias e uma recordação tardia, após 30 minutos. Pacientes considerados amnésicos têm uma enorme dificuldade para lembrar das histórias.

Rivermead: Tarefa de memória prospectiva que se refere a capacidade de lembrar de eventos que ainda vão acontecer. É um teste composto de várias tarefas apresentadas seguidamente, como por exemplo, lembrar de uma história, objetos e rostos após sua apresentação e depois de alguns minutos, recordar de compromisso assim que o alarme disparar, reproduzir imediatamente um trajeto feito pelo examinador e após alguns minutos. É bastante comum que pacientes com dificuldades de memória não desempenhem bem esta tarefa, bem como pessoas que tem não conseguem se organizar com compromissos, tarefas que devem realizar no futuro e planejamento.

Stroop: Este é um teste com estímulo visuais mostrados em três cartelas e que mede a capacidade de inibir respostas automáticas e dominantes. As cartelas são apresentadas uma de cada vez. Nas duas primeiras o sujeito precisa apenas falar o nome das cores o mais rápido que conseguir. Na última cartela, ele precisa inibir a resposta automática de ler as palavras em detrimento das cores nas quais as palavras estão impressas, o mais rápido possível. A medida é feita a partir do tempo que o paciente levou para terminar a tarefa. Os erros também são anotados.

Trilhas A e B: Tarefa de atenção alternada em que o paciente precisa ligar números (parte A) e depois ligar números e letras de forma crescente e alternada (parte B). A medida utilizada é o tempo gasto para concluir cada uma das partes do teste sem cometer erros.

F.A.S. e Animais: São utilizados como tarefas de fluência verbal de base fonológica (F.A.S) e semântica (Animais) respeitando algumas regras, como não usar palavras derivadas, nomes próprios, ou palavras que não condizem com o solicitado. Ao paciente é dito que precisa mencionar o maior número de palavras que puder no tempo de um minuto. Também avaliam as habilidades de busca de palavras e elaboração de estratégias.

Boston: Teste de linguagem que mede a habilidade de nomeação de figuras. São 60 figuras apresentadas ao paciente uma de cada vez. Se ele tiver dificuldade para nomear, o examinador pode oferecer uma pista fonológica e semântica. Por exemplo, ao mostrar uma gaita pode-se dizer que começa com a letra “g”. Caso ainda haja dificuldade, apresenta-se a pista semântica dizendo que é um instrumento musical. Pacientes com afasia possuem muita dificuldade neste teste.

measure brain

Existem outras tarefas em neuropsicologia, mas por uma questão de espaço, me reservo em ressaltar mais uma vez que nosso olhar é o crivo mais valioso que podemos ter durante o processo de avaliação. Saber COMO o paciente realiza cada uma destas tarefas, que estratégias utilizou, quais comentários fez, se demonstrou irritabilidade, ansiedade, apatia, falta de iniciativa, enfim, que comportamentos observamos, é uma riquíssima fonte de informação. Relacionar todos os dados obtidos em avaliação torna a elaboração de metas para reabilitação mais facilitada.

Para finalizar deixo algumas referências de livros e manuais com uma infinidade de baterias, testes e tarefas. Confiram e nos vemos nos comentários!

Lezak, M.; Howieson, D.B.; Bigler, E.D.; Tranel, D. (2012). Neuropsychological Assessment, 5th Edition. Oxford: Oxford University Press.

Malloy-Diniz,; L.F, Fuentes, D.; Mattos, P.; Abreu, N. (2010). Avaliação Neuropsicológica. Artmed: Porto Alegre.

Strauss, E.; Sherman, E.M.S. & Spreen, O. (2006). A Compendium of Neuropsychological Tests: Admnistration, Norms, and Commentary, Third Edition. Oxford: Oxford University Press.

Avaliação é um norte. Avante!

Caros leitores! Andei observando os textos mais acessados do meu blog e não era para menos. Tive um enorme acesso no tema “avaliação neuropsicológica” e por isso resolvi escrever um pouco mais sobre o assunto já que o povo gostou =)

Para quem está mais familiarizado com Neuropsicologia, pode ser que o assunto fique um pouco repetitivo, o que não elimina o fato de que bons profissionais procuram estudar, pesquisar, enfim, aprofundar seus conhecimentos, e portanto, mesmo para aqueles que já trabalham na área considero o texto útil. Por outro lado, esse texto também pode ajudar você que ainda está curioso em saber como trabalha um neuropsicólogo, ou melhor, como suas práticas vão sendo manifestadas na clínica.

Uma das atividades que mais são exercidas pelos neuropsicólogos é a prática da avaliação. Na nossa área, por exemplo, é bastante comum lidarmos com frases do tipo…

“aquele menino parece esquisito, quase não fala, não interage, será que ele tem um transtorno?”

“minha mãe tem 80 anos e está muito esquecida, já não reconhece as pessoas, acho que ela está com Alzheimer”

“essa criança está muito agitada, talvez tenha TDAH e precisa de um especialista para avaliá-lo”

“meu irmão bateu a cabeça quando caiu de moto e agora está agressivo, impulsivo, fala coisas absurdas para os outros”.

Estudantes, profissionais, colegas ou familiares, não importa quem seja o interlocutor: diariamente ouvimos isso e a única forma de poder responder a essas questões é fazermos uma avaliação neuropsicológica. Como já mencionado no outro texto, a avaliação trata-se de uma prática que auxilia o clínico a investigar funções cerebrais que podem estar comprometidas. Além disto, o uso de instrumentos sensíveis também nos ajuda a compreender o grau de prejuízo decorrente de um problema neurológico, cerebral.

O uso de testes é fundamental para nossa investigação. No entanto, eles não são a única forma de sabermos se existe um prejuízo cognitivo, e como ele interfere na vida da pessoa assistida. Desde o primeiro contato com o paciente, o histórico da doença, os dados atuais, o relato dos familiares, o uso de escalas comportamentais e de humor, escalas para cuidadores, tarefas funcionais e ecológicas, e por fim, a observação clínica, são riquíssimas fontes de informação que quando agrupadas e compreendidas de forma relacional, nos ajudam a perceber o grau de impacto no dia a dia do paciente, ou seja, o quanto um problema cerebral atrapalha a sua vida. Quando conseguimos fazer essa relação, então podemos elaborar em conjunto – o clínico, a família e o paciente – metas para reabilitação e selecionar quais estratégias são mais eficazes para cada caso específico.

Montei um esquema que ajuda a ilustrar de forma clara quais funções podem ser investigadas e como elas podem interferir na vida do paciente. As setas indicam a causalidade entre função prejudicada e impacto no comportamento, personalidade, emoções, interação social e de forma mais ampla, na vida diária.

 

esquema funçoes impacto

 

Um ponto bastante importante é a seleção dos instrumentos que serão utilizados na avaliação neuropsicológica. Este é um momento que exige muita cautela e cuidado, pois mais adiante, sua hipótese cognitiva resultará dos resultados da avaliação e do seu raciocínio clínico. Isso equivale a dizer que se você utilizar testes que avaliam apenas uma parte das funções cerebrais, poderá correr o risco de traçar um perfil neuropsicológico pouco fidedigno e, consequentemente, um plano de tratamento falho ou pouco eficaz. Compreender os déficits do paciente é tão importante quanto conhecer o que está preservado.

Assim, reuniões clínicas, contato com neurologistas, fisiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, e estudo continuado com supervisão especializada de pessoas que trabalham há anos na área farão você se munir de conhecimentos que nortearão efetivamente o seu trabalho.

Neuropsicologia é um conhecimento e uma prática difíceis, mas trabalhar na área é tão gratificante que faz valer a pena.

Avaliação Neuropsicológica: por quê e para quê?

Queridos leitores, estou devendo este texto já faz um tempo. Hoje resolvi colocar algumas coisas em dia e isso inclui meu blog também =)

Para aqueles que pensam que eu vou ficar aqui reinventando a roda sobre o tema (já que está tão na moda), ou ainda, aqueles curiosos por saber qual teste pode ser aplicado em algum quadro de distúrbio neurológico, podem dar meia volta que não é nada disso.

O objetivo deste texto é justamente provocar vossas mentes para pensarmos juntos na real função da avaliação neuropsicológica. A resposta parece bem óbvia e bem intuitiva, mas não é tão simples assim. Então, antes de dizer o que eu penso sobre a avaliação, por quê e para quê ela serve, vou antes mencionar aquilo que grande parte das pessoas que trabalham com neuropsicologia já sabem. Para isso, vamos responder a seguinte pergunta:

  •  O que é Avaliação Neuropsicológica?

É uma atividade exercida geralmente por psicólogos, pois é a única profissão que regulamenta a utilização de testes psicológicos e neuropsicológicos.

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[Seu objetivo é investigar funções cognitivas (pensamento, atenção, memória, linguagem, percepção etc.) em pessoas que possam apresentar algum tipo de comprometimento cerebral, e relacionar com prejuízos comportamentais. Esta prática auxilia muito na observação do que está preservado e o que está comprometido.]

Alguns poucos anos estudando e trabalhando com neuropsicologia, avaliação e reabilitação me ajudaram a entender que essa prática não se resume apenas a isso. O uso de testes padronizados ainda é bastante escasso no Brasil, ainda não temos disponíveis medidas que nos ajudem a entender como a população brasileira se comporta diante de determinados fenômenos (nesse caso, queremos saber como os fenômenos cerebrais acontecem). Essa é uma das limitações que enfrentamos.

No entanto, quem trabalha com avaliação sabe que os testes são apenas ferramentas que ajudam a entender um quadro clínico naquele momento específico, como uma fotografia daquele momento do funcionamento cerebral do sujeito. E sabem, creio eu, que existem outras formas de avaliar que não seja com o uso de testes apenas. Nossa observação é um excelente crivo que podemos utilizar diante de um paciente.

Pois bem, mas então se não temos tantos testes assim para quê serve a avaliação, e por quê ela é importante? Em primeiro lugar, devo dizer que sim, a avaliação é extremamente importante, mas a prática limitada apenas a entender o funcionamento do paciente, o grau de comprometimento e a elaboração de um relatório, de nada auxilia esse sujeito se NADA for feito DEPOIS.

PORTANTO, a avaliação neuropsicológica tem a função de, além destas já apontadas, auxiliar na elaboração de um plano de intervenção, que é o que chamamos de Reabilitação Neuropsicológica, a cereja do nosso bolo!

Por isso eu sempre digo: avaliar para reabilitar. Precisamos oferecer o maior suporte que pudermos, minimizando, diminuindo, compensando os déficits e prejuízos causados por um acidente cerebral. Nosso objetivo de ouro é entender o funcionamento dos nossos pacientes em situações da vida real, e para isso, não precisamos apenas de testes, mas sim de um olhar voltado para como eles realizam suas atividades e tarefas diariamente: o que está difícil, o que naquele momento não é possível de se fazer, que suporte ele precisa, quem irá monitorá-lo… e por aí vai.

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Queremos que a avaliação nos direcione, que ela seja uma norteadora das nossas intervenções, para que possamos oferecer o maior nível de qualidade de vida possível a essas pessoas.

Dá para imaginar como eu amo esse trabalho, né? ❤